Esse tipo de cantiga procurava ridicularizar pessoas e costumes da época com produção satírica e maliciosa.
As cantigas de escárnio são críticas, utilizando de sarcasmo e ironia, feitas de modo indireto, algumas usam palavras de duplo sentido, para que, não entenda-se o sentido real.
As de maldizer utilizam uma linguagem mais vulgar, referindo-se diretamente a suas personagens, com agressividade e com duras palavras, que querem dizer mal e não haverá outro modo de interpretar.
Os temas centrais destas cantigas são as disputas políticas, as questões e ironias que os trovadores se lançam mutuamente.
Vej' eu as gentes andar revolvendo
e mudando aginh' os corações
do que põe entre sy as nações;
e já m'eu aquesto vou aprendendo
e ora cedo mais aprenderei:
a quen poser preito, mentir-lho-ei,
e assi irei melhor guarecendo.
Cá vej' eu ir melhor ao mentireiro
qu'ao que diz verdade ao seu amigo;
e por aquesto o jur'e o digo,
que já mais nunca seja verdadeiro,
mais mentirei e firmarei log' al:
a quem quero (i) bene, querrei-lhe mal,
e assi guarrei como cavaleiro.
Pois que me prez nen mha onrra non crece,
porque me quígi teer à verdade
vede-lo que farei, par car(i)dade
pois que vej'o o que m'assi acaece
mentirei ao amigo e ao senhor,
e poiará meu prez e meu valor
con mentira, pois con verdade dece. Tema: o desconcerto do mundo ou o mundo às avessas.
Assunto: a(s) injustiça(s) deste mundo (os desonestos são premiados e os honestos castigados);
o sujeito poético manifesta a firme intenção de mudar de atitude como se pode comprovar: "a quen puser preito, mentir-lho-ei", "mais mentirei e firmarei logo al", "querrei-lhe mal", "mentirei ao amigo e ao senhor".
Forma: cantiga de escárnio porque encerra uma crítica que não identifica os atingidos.
Valor documental:
reside no facto de a cantiga fornecer informações sobre a sociedade da Idade Média: ambiente social, moral e cultural.
"O que foi passar a serra" de Afonso X (CBN 494/CV 77)
O que foi passar a serra
e nom quis servir a terra
é ora, entrant'a guerra,
que faroneja?
Pois el agora tam muito erra,
maldito seja!
O que levou os dinheiros
é por nom ir nos primeiros
que faroneja?
Pois que vem cõnos prestumeiros
maldito seja!
O que filhou gram soldada
e nunca fez cavalgada,
é por nom ir a Graada
que faroneja?
Se é ric'omem ou á mesnada,
maldito seja!
O que meteu na taleiga
pouc'aver e muita meiga,
é por nom entrar na Veiga
que faroneja?
Pois chus mol (e) é que manteiga.
maldito seja! Tema: sátira política, decadência, traição.
Caracterização do objecto: covarde, ladrão, falta de honra.
Refrão:
conteúdo - oportunismo do cavaleiro/maldição do rei;
pontuação - interrogação e exclamação;
ritmo - versos curtos, intercalado com verso longo.
Forma: paralelismo anafórico que reforça a caracterização; estrofes singulares e monórrimas.
"Roi Queimado morreu com amor" de Pero Garcia Burgalês (CV 988/CBN 1380)
Roi Queimado morreu com amor
em seus cantares, par Santa Maria,
por uma dona que gran bem queria;
e, por se meter por mais trobador,
por que lh' ela non quiso bem fazer,
feze-s' el em seus cantares morrer,
mais resurgiu depois, ao tercer dia.
Este fez ele por uma sa senhor
que quer gram bem; e mais vos ém diria:
por que cuida que faz i mestria,
enos cantares que fez, á sabor
de morrer i e des i d' ar viver;
esto faz el, que x' o pode fazer,
mais outr' omem per rem nono faria.
e nom á já de sa morte pavor,
se nom, sa morte mais la temeria,
mais sabe bem, per sa sabedoria,
que viverá, des quando morto for;
e faz-s' em seu cantar morte prender,
des i ar vive: vedes que poder
que lhi Deus deu, - mais queno cuidaria!
E se mi Deus a mi desse poder
qual oj' el á, pois morrer, de viver,
ja mais morte nunca eu temeria. Tema:
cantiga de Escárnio; roi Queimado é atacado como trovador de pouca qualidade, e o amor cortês é ridicularizado.
Divisão em partes:
1ª. parte: 1ª. estrofe - roi Queimado para mostrar ser melhor trovador do que os outros e amar mais a sua dama morreu de amor por ela;
2ª. parte: 2ª. estrofe - ele fez isso porque acha que assim mostra mais engenho do que os outros trovadores;
3ª. parte: 3ª. estrofe - ele é como que um eleito de Deus, pois morreu e ressuscitou; o trovador também se lhe fosse dado esse poder não temeria a morte e ressuscitaria como ele;
em todo o poema há ironia e na terceira parte ridiculariza-se o amor cortês.
Forma:
cantiga de mestria com três estrofes (sétimas) e finda (terceto) que retoma a rima dos três últimos versos das estrofes (coblas) abbabbb, rima emparelhada e interpolada, toante e consoante, pobre e rica.
Sirventês literário: um trovador ridiculariza outro por se querer fazer melhor, há também a inveja a funcionar.
"Meu senhor arcebispo, and' eu escomungado," de Diego Pezelho (BV 1124/CBN 1959)
Meu senhor arcebispo, and' eu escomungado,
porque fiz lealdade; enganou-m'i o pecado.
Soltade m', ai, senhor,
e jurarei, mandado, que seja traedor.
Se traiçon fezesse, nunca vo-la diria;
mais, pois fiz lealdade, vel por Santa Maria,
Soltade m', ai, senhor,
e jurarei, mandado, que seja traedor.
Per mha malaventura tive um castelo em Sousa
e dei-o a seu don' e tenho que fiz gran cousa:
Soltade m', ai, senhor,
e jurarei, mandado, que seja traedor.
Per meus negros pecados, tive um castelo forte
e dei-o a seu don', e ei medo da morte.
Soltade m', ai, senhor,
e jurarei, mandado, que seja traedor. Tema: sátira popular contra os senhores que faltaram ao juramento de fidelidade a D. Sancho II e entregaram os castelos a D. Afonso III.
Assunto:
excomunhão por causa da entrega dos castelos.
Razão do pedido e sua coerência:
pede que lhe seja levantada a excomunhão pois se limitou a ser fiel ao seu rei, foi leal mas como os bispos foram traidores excomungaram-no pela sua lealdade.
Caracterização do protagonista:
caracteriza-se como traidor, prefere ser considerado como tal a ser excomungado e morrer em pecado; ao fazer este acto de contrição está, no fundo, a criticar o arcebispo (o clero) pela sua traição.
Forma:
cantiga de refrão aa CC; dísticos, refrão em dístico.
Valor documental:
documenta as lutas políticas, a traição dos alcaides, a corrupção do poder eclesiástico e da fidalguia militar.
Classificação da sátira:
maldizer - a pessoa satirizada é nomeada;
escárnio - a crítica é velada com humor - ironia.
"Ai, dona fea, foste-vos queixar" de Joam Garcia de Guilhade (CBN 1485/CV 1097)
Ai, dona fea, foste-vos queixar
que vos nunca louvo em meu cantar;
mais ora quero fazer um cantar
em que vos loarei toda via;
e vedes como vos quero loar;
dona fea, velha e sandia!
dona fea, se Deus mi pardom,
pois avedes atam gram coraçom
que vos eu loe, em esta razom
vos quero ja loar toda via;
e vedes qual sera a loaçom:
dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
em meu trobar, pero muito trobei;
mais ora ja um bom cantar farei;
em que vos loarei toda via;
e direi-vos como vos loarei:
dona fea, velha e sandia! Tema: paródia de louvor da dama, característico das cantigas de amor.
Assunto:
a dama queixava-se de nunca ser louvada pelo trovador, ele, ao saber disso, decide fazer-lhe um cantar mas que a ridiculariza em vez de louvar.
Recursos estilísticos:
apóstrofe: "D. Fea";
hipérbole: "mais ora quero fazer um cantar/em que vos loarei toda via";
o refrão com uma gradação ternária e um ritmo ascendente "dona fea, velha e sandia!"; termina cada uma das estrofes, insultando a dama, gritando-lhe, como num coro trágico, como num eco que nunca se calará.
Forma:
paralelismo semântico (4º. e 5º. versos de cada estrofe) e estrutural (4º. verso e refrão);
cantiga de refrão, AAABAC, quintilhas c/ refrão monóstico; cantiga de escárnio;
Sirventês pessoal.
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