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Análise do soneto: ´´À mesma D. Ângela`` - Gregório de Matos

Rompe o poeta com a primeira impaciência querendo declarar-se e temendo perder por ousado
Anjo no nome, Angélica na cara,
Isso é ser flor, e Anjo juntamente,
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós se uniformara?
Quem veria uma flor, que a não cortara
De verde pé, de rama florescente?
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus, o não idolatrara?
Se como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu custódio, e minha guarda
Livrara eu de diabólicos azares.
Mas vejo, que tão bela, e tão galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda
.
Vocabulário
Florente: florescente, brilhante, esplendente.
Uniformar: converter em uma só forma coisas diversas.
Rama: ramos e folhagens de árvores.
Luzente: brilhante.
Idolatrar: adorar, amar cegamente.
Custódio: anjo da guarda, protetor.
Diabólico: funesto, terrível, satânico.
Azar: agouro, infelicidade, desgraça.
Galharda: garbosa, esbelta, elegante
Pesar: desgosto, mágoa, tristeza.
Tentar: provocar, seduzir, instigar para o mal.
James Amado, baseando-se em grande parte no códice de Manuel Pereira Rabelo (primeiro biógrafo – século XVIII), organizou um ciclo dos poemas endereçados a D. Ângela de Sousa Paredes Rabelo, segundo a evolução do relacionamento amoroso, que termina com Gregório sendo rejeitado em favor de outro.
O soneto transcrito (o sétimo poema do ciclo “Ângela”) revela muito do estilo cultista adotado por Gregório em suas composições. Desenvolve-se por meio do jogo de palavras e imagens: “Ângela” = “Angélica” = “Anjo”, “flor” = “florente”. Gregório segue uma tradição explorada por Shakespeare e Camões ao comparar a beleza da mulher à natureza.
O esquema rimático é: ABBA / ABBA / CDC / DCD. Quanto à disposição ou ligação entre os versos, nas quadras: rima interpolada entre o primeiro e o quarto versos (porque entre os dois versos que rimam há mais do que um de rima diferente) e emparelha entre o segundo e o terceiro versos (rimam dois a dois); nos tercetos, a rima é cruzada (porque entre os dois versos que rimam há apenas um de rima diferente).
O tema central é o caráter contraditório dos sentimentos do poeta pela mulher, que é simultaneamente flor (metáfora da beleza) e objeto do desejo, e anjo (metáfora da pureza) e símbolo da elevação espiritual. Podemos, em primeiro lugar, observar o uso dos trocadilhos anjo (ângelus em latim, daí vem Ângela, angélico) / Angélica (do latim Angelicus, pura como um anjo e também o nome de uma flor que inspira sensualidade) na construção imagética do poema: trata-se de uma mulher de nome e feições angelicais, tão bela que se assemelha a uma flor. O poeta trabalha com essas duas entidades – flor e anjo – que se irmanam pela beleza, mas que se distanciam pela duração. A flor significa brevidade, enquanto que o anjo é ser eterno. Essa duplicidade emerge do nome da mulher amada, cuja beleza indiscutível lança o poeta em tensão.
Na primeira estrofe, por exemplo, o eu lírico começa a esboçar uma imagem de mulher construída a partir de duas palavras, que associa ao seu nome e ao seu rosto: flor (´´Angélica na cara``) e anjo (´´Anjo no nome``). Aqui podemos perceber a presença de uma contradição, já que a mulher amada é anjo (plano espiritual) e flor (plano material): estas duas antíteses (recurso estilístico que busca a unidade entre elementos que se opõem) ao mesmo tempo em que marcam a dualidade, marcam também a tentativa de unificação. Tentativa cuja base é a beleza: beleza que quando associada à flor tende a ser breve, destruída (´´Quem veria uma flor, que a não cortara``), e quando associada a anjo, tende a ser idolatrada, glorificada, eternizada (´´E quem um Anjo vira tão luzente,`` /´´Que por seu Deus, o não idolatrara?``)
No primeiro terceto o eu lírico já pronuncia o paradoxo que ele explicará no final do poema. Como a sua amada representa a figura de um anjo, a quem ele constantemente adora (´´Anjo sois dos meus altares``) o natural seria guardá-lo das tentações, auxiliá-lo, livrá-lo de ´´diabólicos azares``.
A última estrofe começa com a conjunção adversativa ´´Mas`` dando prosseguimento ao raciocínio da estrofe anterior, deixando clara a contradição que há na condição de sua amada. E a dualidade inicial, que antes vacilava entre o metafísico e o botânico, reduz agora seu campo de alcance e se concentra num só ente: o anjo. Mas um anjo dual, que tenta e não guarda. Um anjo que não se identifica, apenas e necessariamente, com o bem.
O toque barroco aparece no jogo de contradições revelado nos dois tercetos: se essa bela mulher é um anjo, como é possível que, em lugar de garantir proteção, cause apenas tentação ao eu lírico? A contradição entre o amar e o querer desemboca no paradoxo dos versos finais: “Sois Anjo que me tenta e não me guarda.”
Assim, o soneto que se inicia com a louvação de uma beleza angelical, encerra-se como advertência contra uma tentação demoníaca. Esse é um bom exemplo do desenvolvimento da lírica amorosa na obra de Gregório, que mantém viva a tensão entre a imagem feminina angelical e a tentação da carne que atormenta o espírito.

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