Possibilidades pedagógicas do cinema em sala de aula
O debate em torno das questões educacionais tem gerado muitas controvérsias. Não se pode negar, por exemplo, a ampliação, nas últimas décadas, das oportunidades educacionais. No âmbito específico das práticas escolares, o próprio sentido do que seja "educação" amplia-se em direção ao entendimento de que os aprendizados sobre modos de existência, sobre modos de comportar-se, sobre modos de constituir a si mesmo para os diferentes grupos sociais, particularmente para as populações mais jovens se fazem com a contribuição inegável dos meios de comunicação. Fischer (2002) faz indagar a nós professores o modo de construirmos o processo de ensino aprendizagem. Qual o melhor método? O que abordar e contextualizar?
O processo tradicional de ensino não é mais capaz, sozinho, de realizar esta tarefa, está além de suas possibilidades, hoje a educação precisa ultrapassar a sala de aula e atender às necessidades imediatas da sociedade (GOMES, 1981). A relação entre cinema e conhecimento, no entanto, vai além do campo da educação formal. Os novos métodos educacionais devem contar principalmente com a utilização dos meios de comunicação, como o rádio e o cinema (MIRANDA, 2007). Desde os primórdios da produção cinematográfica a indústria do cinema sempre foi considerada, inclusive pelos próprios produtores e diretores, um poderoso instrumento de educação e instrução.
Não é possível ignorar o impacto causado pela criação e difusão do cinema e outros meios de comunicação de massa na sociedade do século XX. De maneira geral, os documentos visuais são utilizados de forma marginal e secundária (FIGUEIRA, 1995). A relação entre cinema e educação, inclusive a educação escolar, faz parte da própria história do cinema, onde o que é específico do cinema em relação ao conhecimento é que este está contido na imagem, ou melhor, na edição das imagens.
Ao considerarmos os conhecimentos e saberes contidos nos filmes, transcendemos o uso do cinema e do audiovisual como ilustração, motivação e exemplo. Cinema é arte.
“As artes auxiliam na formação do cidadão ao”:
- Mobilizar a expressão e a comunicação pessoal;
- Intensificar as relações dos indivíduos tanto com seu mundo interior como com o exterior;
- Auxiliá-lo a compreender a diversidade de valores que orientam tanto seus modos de pensar e agir como os da sociedade;
- Favorecer o entendimento da riqueza e diversidade da imaginação humana;
- Torná-lo capaz de perceber sua realidade cotidiana mais vivamente, reconhecendo e decodificando formas, sons, gestos e movimentos que estão à sua volta”. (www.cineedu.com.br/page11.html)
Desde a década de 1910, os anarquistas desenvolveram uma intensa reflexão sobre os usos do cinema, como um instrumento a serviço da educação do homem, do povo e da transformação social (FIGUEIRA, 1995). Essa transformação social deve acontecer desde a formação do professor, que por sua vez deve considerar os saberes do aluno. Segundo Tardif (2002), o saber é um saber plural, oriundo da formação profissional; de saberes disciplinares, curriculares e experienciais.
A inclusão de novas formas de construir o processo de ensino aprendizagem, é uma medida necessária para uma formação integral e adequada às características culturais do cidadão das sociedades modernas. O cinema torna-se uma proposta educativa evidente, quando representa um instrumento de mudança social, pelas vias das técnicas e da ciência. Considerado como uma ferramenta educacional, tem a oportunidade de inserir na sala de aula como possibilidade do processo educacional e percorre etapas: impressão da realidade, identificação e interpretação.
Para Duarte (2006:17) “ver filmes é uma prática social tão importante, do ponto de vista da formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais.” Dentro do contexto da utilização do cinema como veículo, ferramenta de ensinar temos a oportunidade de enfocar aspectos históricos, literários e cinematográficos, seja de forma separada e/ou em conjunto. Através destas possibilidades podemos trabalhar com os temas transversais, estabelecidos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), estes constituem uma possibilidade do saber, da memória, do raciocínio, da imaginação, e da estética entre outros, ou seja, de integração dos saberes.
Trata-se de assistir filmes com intenção pedagógica e não para formar meros cinéfilos. Como exemplo temos o livro “Amar, verbo Intransitivo" de Mário de Andrade (1927) que mais tarde (1975) se transforma no filme “Lição de Amor” dirigido pelo cineasta Eduardo Escorel. Neste filme temos três aspectos abordados: o histórico, o literário e o cinematográfico.
Sobre a perspectiva literária temos a criação de um romance, que é definido pelo autor (Mário de Andrade) como idílio, utiliza uma linguagem coloquial com emprego de metáforas, destaca a mulher, a sexualidade humana e denuncia a burguesia paulistana no início do século XX. Uma das personagens principais, a alemã (Fraulein-Elza), é contratada pelo industrial Souza Costa para “serviços”( governanta e professora) em seu domicílio. Ensina alemão, piano e também inicia o filho de Souza Costa (Carlos) na vida sexual, uma vez que seu pai considerava-o muito menino para as prostitutas aproveitadoras da época. Sendo de origem alemã, Elza criticava os modos latinos (barulho, briga entre irmãos), se sentia superior e lia incessantemente os clássicos alemães -Goethe, Schiller- que retratavam o homem-do-sonho e o homem- da- vida, pois Fraulein tinha o sonho de voltar ao seu país de origem, casar-se e levar uma vida normal. Após a “aula inicial”, Carlos vicia-se em “estudar de forma diferenciada”, uma vez que o contrato feito entre seu pai e a Elza era de “professora do amor”. Chega um momento que Souza Costa julga não mais necessários os serviços da preceptora e a manda embora.
No contexto histórico, retrata a emigração alemã daquele século em virtude da unificação alemã; aqui, no Brasil, o crescimento industrial, a burguesia paulistana, as desigualdades sociais, o déficit escolar, pois até o final do século XX quase não existiam escolas públicas no Brasil. O ensino era formal, dado em aulas avulsas, sem métodos pedagógicos, sem programas, crianças eram alfabetizadas em sua grande maioria através de preceptores contratados para este fim. Esses eram os primeiros traços da profissão de professor- preceptor, que na época exercia sua função em domicílios burgueses. De acordo com Ritzkat (2003:269), “a preceptora é, por definição, uma mulher que ensina em domicílio ou uma mulher que habita com uma família para fazer companhia e dar aulas às crianças."
Um livro que evidencia os dramas vividos pelos preceptores aqui no Brasil é “Os meus Romanos: alegrias e tristezas de uma educadora alemã no Brasil” – Ina Von Binzer, Paz e Terra, 1982. Este livro retrata parte da história brasileira, no período do segundo Império, baseado em correspondências de uma educadora (governanta) alemã que veio dar aulas no Brasil e sua amiga Grete que morava na Alemanha. É uma obra que fala sobre a questão do preconceito racial, o clima brasileiro, a alimentação, o sistema de relação entre as pessoas, o comportamento à mesa entre outras arbitrariedades assim julgadas por Ina Von Binzer, com pseudônimo de Ulla Von Eck em suas cartas à sua amiga.
Em suas cartas muitos detalhes eram traçados sobre as cidades que ela conhecia (Ouro Preto, Rio de Janeiro, Petrópolis, São Paulo). Trechos das cartas demonstram isto:
“Ah! Querida grete: se você soubesse como são amargos os dias aqui! Como as horas se arrastam, como tudo parece pesado! As crianças são travessas, a inquisição apática, a casa inteira é barulhenta e sinto-me tão só , tão indescritivelmente solitária!""Depois tudo isso começa a me enervar demais....” (BINZER, 1982:46).“Grete do coração. Cá estou de novo nesta colorida e ruidosa cidade tropical... é preciso confessar que este Rio é fantasticamente lindo e maravilhoso, visto da baía, como o vi na minha chegada e novamente agora, na minha volta de Petrópolis.” (BINZER,1982:59)“... estou contratada para São Paulo e imagine a minha sorte, para a própria cidade de São Paulo, numa boa família.” (BINZER, 1982:72)
Toda essa problemática descrita nas cartas da Ina e o livro de Mário de Andrade –“Amar, verbo Intransitivo”, foram levadas para as telas de cinema através do cineasta Eduardo Escorel em seu filme “Lição de Amor”. O “Lição de Amor” navega com calma na reconstrução dos costumes e das modas da década de 20 do século passado. Senhorita Helga alemã que vive no Brasil sonhando voltar à Europa – é contratada por um fazendeiro, Souza Costa, pai de Carlos rapaz de 15 anos de idade. Souza Costa e Helga combinam que ela iniciará sexualmente o menino, além de ensinar alemão e piano a ele e à irmã, recebendo em troca a bagatela de oito contos de réis, parte da quantia acalentada para deixar de vez o Brasil.Uma tese apresentada na PUC (VASCONCELOS, 2004) trata dos preceptores como agentes de uma educação doméstica das elites daquela época. A autora mostra que a educação doméstica foi uma significativa prática de educação realizada na casa do Brasil de Oitocentos. Realizada pelos mestres, que se caracterizavam como professores particulares, preceptores, ou mesmo por familiares, padres.
Diante do exposto podemos entender que o cinema é uma ferramenta de trabalho motivadora, inovadora, bem como instrumento capaz de envolver várias disciplinas e conteúdos programáticos num mesmo momento. De acordo com Napolitano (2005:12) “A utilização do cinema na escola pode ser inserida, em linhas gerais, num grande campo de atuação pedagógica." Uma das justificativas mais comuns para o uso do cinema na educação é que o cinema motiva para o processo de aprendizagem. Entendamos que esta metodologia por si só não resolverá a problemática da educação no Brasil.
Porém precisamos compreender que a possibilidade da adequação do cinema na sala de aula deve condicionar-se à existência de uma sala, tela, projetor, vídeo, DVD e som. Além do mais, deve-se trabalhar de forma interdisciplinar para que não haja quebra do conteúdo, uma vez que o filme a ser trabalhado não dura somente cinqüenta minutos, e o aluno precisa compreender que se faz necessária a contextualização, e a interdisciplinaridade.
O professor ao optar por esta metodologia deve estar preparado para buscar todas as fontes possíveis, tomando como base o contexto sócio-histórico-cultural.
Referências bibliográficas
BINZER, Ina von.Os meus Romanos:alegrias e tristezas de uma educadora no Brasil –tradução de Alice Rossi ,3ª ed. Rio de Janeiro:Paz e Terra,1982.
DUARTE, Rosália. Cinema e Educação.Belo Horizonte:Autêntica,2ª ed., 2002,128p.
FIGUEIRA, Cristina Aparecida. O Cinema do povo : um projeto de educação anarquista,1991-1921(dissertação)São Paulo:PUC-SP,1995.
FISHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia:modos de educar na (e pela) TV.Educação e pesquisa,v.28 n º1,São Paulo jun./2002.
GOMES, Paulo Emílio. Crítica do cinema no suplemento literário,v 1,Rio de Janeiro: Paz e terra,1981.
MIRANDA, Carlos Eduardo Albuquerque.A educação pelo cinema.Disponível em:http://www.artigocientifico.com.br/uploads/artc_1153335383_46.pd. Acesso: maio/2007.
NAPOLITANO, Marcos.Como usar o cinema na sala de aula. 2.ed. São Paulo:Contexto,2005.
RITZKAT,Marli Gonçalves Bicalho. Preceptoras alemãs no Brasil .In:LOPES,Eliane Marta Teixeira; FILHO,Luciano Mendes Faria; VEIGA,Cynthia Greive.
TARDIF, Maurice.Saberes docentes e formação profissional.Petrópolis,Rio de janeiro:vozes, 2002.
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e seus mestres:a educação doméstica como uma prática das elites no Brasil de oitocentos.300f.Tese (Tese em Educação ) 2004- Departamento de Educação –Pontífica Universidade Católica-PUC. Rio de Janeiro, 2004.
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