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ANÁLISE LITERÁRIA NO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS 20.20-28

ANÁLISE LITERÁRIA NO EVANGELHO SEGUNDO MATEUS 20.20-28
Laércio Rios Guimarães1
RESUMO
Trata da análise do texto bíblico partindo das normas para análise literária concentrando-se no texto do evangelho de Mateus no capítulo 20: 20-28. Apresenta a visão e estratégia do narrador, o tempo (velocidade e ordem), o cenário da história; identifica os personagens e traça o perfil e ação deles; e descreve um fio condutor de enredo com os itens exposição, tensão, resolução e desfecho. Toma como referencial teórico as idéias de Daniel Marguerat e Yvan Bourquin, além de João Cesário Leonel Ferreira. Conclui apresentando uma aplicação específica da narrativa à vida do leitor.
Palavras-chave
Análise literária; narrativa bíblica; tensão; resolução; desfecho.
ABSTRACT
This article is a literary analysis of the biblical text found in Gospel of Matthew chapter 20, verses 20 to 28. The narrator’s view and strategy, the time (speed and order of facts), the story’s scenario were herein presented, and also characters were identified together with their profile and type of action. Moreover, this article describes the narrative line of thought composed by exposition, tension, resolution and conclusion. Theory references used were the concepts of Daniel Marguerat, Yvan Bourquin and João Cesário Leonel Ferreira. At last, a specific application of the narrative is made to the reader’s life.
Key words
Literary Analysis; Biblical Narrative; Tension; Resolution; Conclusion.
1 Mestrando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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Introdução
O presente trabalho procura apresentar uma análise bíblica partindo das normas literárias para interpretação das narrativas. Não se trata da única, mas é uma excelente ferramenta que pode dirigir o leitor ao entendimento e aplicação do texto, fazendo-o se aprofundar e adentrar na história narrada, estreitando mais o caminho entre o texto bíblico e o homem de nossa época – tarefa que tem se tornado árdua nos últimos tempos, dada a distância de tempo e conceito atuais com relação aos textos bíblicos. A riqueza da literatura e narrativa bíblica ficarão evidentes aos olhos de qualquer leitor que poderá olhá-la com mais seriedade e menor desconfiança.
Texto Bíblico: Mateus 20.20-282
20 Então, se chegou a ele a mulher de Zebedeu, com seus filhos, e, adorando-o, pediu-lhe um favor.
21 Perguntou-lhe ele: Que queres? Ela respondeu: Manda que, no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita, e o outro à tua esquerda.
22 Mas Jesus respondeu: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu estou para beber? Responderam-lhe: Podemos.
23 Então, lhes disse: Bebereis o meu cálice; mas o assentar-se à minha direita e à minha esquerda não me compete concedê-lo; é, porém, para aqueles a quem está preparado por meu Pai.
24 Ora, ouvindo isto os dez, indignaram-se contra os dois irmãos.
25 Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles.
26 Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva;
27 e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo;
28 tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
Narrador
O narrador se apresenta no texto em terceira pessoa e faz uso da onisciência tanto quanto da onipresença. Os diálogos apresentam os detalhes e os desejos da esposa de
2 Versão utilizada: BÍBLIA Sagrada. 2. ed. Revista e atualizada no Brasil. Tradução de João Ferreira de Almeida. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
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Zebedeu bem como de seus filhos. Concomitantemente a isso, também as respostas de Jesus informam ao leitor o que se passa na mente dele.
No entanto, não se informa ao leitor como se deu a indignação dos dez discípulos contra os dois irmãos. Teriam eles externado este sentimento? A conversa se deu somente entre eles? Quem sabe algum tipo de suspiro ou burburinho que se podia ouvir no ar? Ou a expressão no rosto de cada um poderia manifestar a contrariedade pelo pedido dos outros dois? O narrador deixa ao leitor a imagem do que ali se passou, convidando-o a se colocar na cena, a entender o sofrimento e luta pelos quais Jesus passou ao perceber a falta de entendimento de seus discípulos mesmo depois de todos seus ensinos referentes à humildade e ao serviço (cf. Mateus 18.1-4; 19.14, 21), e à limitação e defeitos humanos presentes neles.
Tempo
O narrador não explicita o tempo cronológico no texto em si. Pode-se recorrer ao texto anterior, no capítulo 20.17, onde o narrador especifica que Jesus estava para subir, juntamente com seus discípulos, para Jerusalém onde seu ministério terreno teria fim. É nesse momento que a mulher de Zebedeu, com seus dois filhos, faz o pedido por eles e para eles. A decisão de chegar a Jerusalém traz à tona o momento de cumprimento do reino que estava sendo prometido e quando a promessa de assentar-se no trono da glória poderia se cumprir (cf. 19.28). Chegar a Jerusalém é, na mente da mulher e de seus filhos, o momento em que tudo se concretizaria e onde eles poderiam ter primazia entre os demais discípulos.
Há ainda outros aspectos presentes nesta narrativa que tratam do tempo e que se tornam relevantes para o entendimento do texto:
Velocidade da narrativa
Tomando como ponto de partida as idéias de Marguerat e Bourquin (2009: 107-112) sobre velocidade na qual se apresentam a (1) pausa descritiva (desaceleração da narração, quando um segmento da narrativa corresponde a uma duração nula no plano da história contada), (2) a cena (ritmo considerado normal em que narrativa e história contada
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caminham em tempo igual), (3) o sumário (narrativa é acelerada usando-se poucas palavras para relatar um período longo da história contada) e (4) a elipse (a narração adota uma velocidade extrema, passando em silêncio um período da história contada), o texto pode apresentar a seguinte divisão:
v. 20a - Pausa descritiva:
Então, se chegou a mulher de Zebedeu, com seus filhos [...]
v. 20b -23 – Cena:
[...] e, adorando-o, pediu-lhe um favor.
Perguntou-lhe ele: Que queres? Ela respondeu: Manda que, no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita, e o outro à tua esquerda.
Mas Jesus respondeu: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu estou para beber? Responderam-lhe: Podemos.
Então, lhes disse: Bebereis o meu cálice; mas o assentar-se à minha direita e à minha esquerda não me compete concedê-lo, é, porém, para aqueles a quem está preparado por meu Pai
v. 24 –Pausa Descritiva:
Ora, ouvindo isto os dez, indignaram-se contra os dois irmãos
v. 25-28 – Cena:
Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos
Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva;
e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo;
tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
Ordem da narrativa
Seguindo ainda Marguerat e Bourquin (2009: 112-119) a ordem da narrativa subdivide-se em: (1) sincronia (que se detém no tempo da história contada em seu começo, meio e fim) e (2) anacronia (que se caracteriza pelos saltos da narrativa seja para o futuro – denominado prolepse -, seja para o passado – denominado analepse). Dessa forma, o texto apresenta os seguintes elementos:
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v. 20 – sincronia:
Então, se chegou a mulher de Zebedeu, com seus filhos e, adorando-o, pediu-lhe um favor.
v. 21 – anacronia (prolepse externa):
Ela respondeu: Manda que, no teu reino, estes meus dois filhos se assentem, um à tua direita, e o outro à tua esquerda.
v. 22 – anacronia (prolepse mista):
Mas Jesus respondeu: Não sabeis o que pedis. Podeis vós beber o cálice que eu estou para beber? Responderam-lhe: Podemos.
v. 23 – anacronia (prolepse mista):
Então, lhes disse: Bebereis o meu cálice; mas o assentar-se à minha
direita e à minha esquerda não me compete concedê-lo, é, porém, para aqueles a quem está preparado por meu Pai.
v. 24-27 – sincronia:
Ora, ouvindo isto os dez, indignaram-se contra os dois irmãos.
Então, Jesus, chamando-os, disse: Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles.
Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva;
e quem quiser ser o primeiro entre vós, será vosso servo;
v. 28 – anacronia (prolepse interna):
tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.
Pode-se também trabalhar com a idéia de (1) tempo mortal (representado pelos dados históricos) e (2) tempo monumental (representado pelo tempo escatológico) que dará o seguinte quadro:
Mulher de Zebedeu e Dois Filhos
Jesus
Tempo Mortal: Assentar-se à direita e à esquerda no reino de Jesus
Tempo Monumental: sentar-se à direita e à esquerda compete ao Pai
Tempo Mortal: Bebereis o meu cálice
Tabela 1 – Gênero de Tempo em Mateus 20.20-28
A perspectiva de tempo adotada por Jesus, parece ser a interpretação de KECK et al. (1995: 397) que chama o tempo monumental de futuro ultimato e o tempo mortal de futuro imediato:
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Há uma marcante progressão nos três “Filho do Homem” ditos nesta sessão. Primeiro, um futuro ultimato: O Filho do Homem sentará no seu glorioso trono (19:28). Esta declaração da vitória escatológica do reino de Deus é representada pela base de toda instrução de 19:1-20:34. Segundo, trata-se do futuro imediato: o quadro do sofrimento e vindicação do Filho do Homem (20:18-19). Isso é o que os discípulos têm olhado através do curto significado. Terceiro diz respeito ao presente: a figura da auto-doação do Filho do Homem servindo aos outros (20.28). Este é o modelo para a própria vida e ministério presente dos discípulos (tradução nossa).
Cenário
Responder onde a narrativa ocorre, olhando somente para o texto, traz certa dificuldade. É necessário recorrer ao contexto anterior no capítulo 20.17-19 que afirma que Jesus está para subir a Jerusalém a fim de cumprir o objetivo máximo de seu ministério terreno: ser condenado à morte pelos sacerdotes e escribas, ressuscitando, porém ao terceiro dia. O capítulo 20.29 especifica o local em que a narrativa ocorre, qual seja, a cidade de Jericó de onde eles saem imediatamente depois. Hendriksen confirma isso ao dizer:
Não há nada de preciso acerca de “então”, nem declara Mateus exatamente onde se deu o evento. À luz de uma comparação entre o versículo 18 e o 19 podemos, não obstante, concluir, com boa porcentagem de probabilidade, que ocorreu no caminho para Jerusalém via Jericó (2001: 342).
Tendo poucos dados geográficos neste trecho da narrativa, o enquadramento na perícope deve ser visto muito mais como social e para sua explicação é necessário recorrer ao contexto de desejo de poder na expectativa do reino messiânico. O pedido da mãe dos filhos de Zebedeu é de que eles tenham posição privilegiada quando Jesus reinar sobre Israel e sobre o mundo. Obviamente, pela resposta e comparação dadas por Jesus no versículo 25, o referencial para aqueles homens que estão ao seu redor é o do próprio poder estabelecido naquela época, ou seja, do poder romano com toda sua estrutura. Jesus apresenta outro referencial que vai de encontro àquele que estava na mente da mãe e de seus dois filhos, assim como na dos demais discípulos. Ele inverte o sentido, trazendo como modelo para o cristianismo as pessoas da base da pirâmide social: os servos ou
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escravos que, na verdade, dentro do padrão romano não passavam de um simples objeto nas mãos de seus proprietários.
A ideia de servir já tinha sido ensinada por Jesus, como pode ser visto em 18.1-5; 19.29-30 e 20.16. Não é difícil supor, portanto, que o conceito estivesse bem evidente na mente de seus discípulos e que, dessa forma, eles deveriam ter entendido tal ensino como a base para a criação de uma nova ordem e de um novo padrão de relacionamento entre eles e os seus futuros seguidores. O reino messiânico não copia os padrões dos reinos dos homens: ele é um reino de glória baseado no serviço e não na opressão e no domínio do mais forte sobre os mais fracos.
Personagens
A ação da narrativa é desenvolvida pelos personagens ali presentes. O texto apresenta-os da seguinte forma: (1) os dez, (2) os dois irmãos (3) Jesus (o Filho do Homem), e a (4) mulher de Zebedeu que não tem o nome conhecido pelo leitor.
Cabe classificar os personagens de acordo com sua função na narrativa. Eles podem ser protagonistas, antagonistas ou personagens cordão. Além desse aspecto, pode-se classificá-los de acordo com suas características: quando há riquezas de descrição tem-se um personagem redondo, quando o narrador apresenta poucas descrições do personagem tem-se um personagem plano, e quando apenas servem limitadamente ao enredo apresentam-se como personagens cordão. Por fim, os personagens podem ser classificados de acordo com o esquema chamado “actantancial” (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009: 80-81) que apresenta o actante (aquele que pode realizar a transformação que está no centro da narrativa), o sujeito (aquele que corre atrás de um objeto que julga valioso), o destinador (mobiliza o sujeito para a busca do objeto que ele remeterá ao destinatário), o destinatário, o adjuvante (aquele que ajuda o sujeito na busca e seu objeto), e o oponente (obstáculos à busca do objeto).
Jesus, o Filho do Homem, é o protagonista da narrativa e o personagem principal. É a ele que é dirigido o pedido da mãe dos dois discípulos. Ele é solícito em ouvi-la; esclarecedor quanto à impossibilidade de atender o pedido; apaziguador, pois trata da questão do ciúme entre os seus discípulos. Por ser aquele que pode realizar a
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transformação que está no centro da narrativa, Jesus atua como actante. É também o destinatário, pois é nele que o objetivo dos sujeitos da narrativa pode ser concretizado.
A Mulher de Zebedeu é um personagem cordão que está a serviço do enredo. Sua característica pode, talvez, ser medida pela maneira pela qual se dirige a Jesus. Ela o adora, pede-lhe um favor e intercede pelos filhos. Reverência, amor maternal e ambição podem ser vistos nesta personagem. Ela se torna a adjuvante da narrativa por tentar fazer seus dois filhos (os sujeitos) atingirem o seu objetivo pretendido.
Os dois filhos da mulher de Zebedeu também são protagonistas na narrativa uma vez que a mãe intercede por eles junto a Jesus e que os mesmos aparecem respondendo afirmativamente à pergunta: “Podeis vós beber o cálice que eu estou para beber?” Estes dois discípulos são ambiciosos, usam a mãe para atingir seus objetivos e demonstram não entender qual o verdadeiro significado de “beber o cálice” proposto por Cristo. Talvez ainda estivessem pensando na perspectiva do reino de poder de Jesus:
Depois do próximo anúncio do sofrimento e morte inocente pelos quais passaria Jesus, os dois discípulos pedem poder e status na presente perícope. O texto providencia a ocasião para o ensino de Jesus sobre a natureza de servir e a prioridade no reino. Os filhos de Zebedeu mostram estar completamente errados em seu conceito de serviço. Eles demonstram que não entenderam o ensino de Jesus no material precedente a respeito dos primeiros serem os últimos e os últimos serem os primeiros (19:30; 20:16). O verdadeiro servo, o servo no reino, é alcançado somente através de serviço e auto-sacrifício. Jesus é o próprio exemplo supremo deste tipo de serviço (HAGNER, 1995: 578, tradução nossa).
Pode-se também destacar a atitude egoísta e arrogante em relação aos demais companheiros de discipulado. Eles são os sujeitos dentro do sistema “actancial”, pois correm atrás de um objeto que julgam valioso, no caso, uma posição privilegiada no reino de Cristo, o Filho do Homem.
Os outros dez discípulos, semelhantemente à mãe dos dois personagens, aqui aparecem como personagens cordão. A narrativa afirma claramente que se indignaram contra os outros dois companheiros pelo pedido que fizeram a Jesus. A indignação demonstra ciúme e de certa maneira o mesmo desejo por parte deles. Portanto, a visão sobre o reino de Jesus na mente dos dez era a mesma que existia na mente dos outros dois.
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Tema
O versículo 26 apresenta o tema deste trecho: [...] quem quiser ser o primeiro entre vós, será esse o que vos sirva. Pode-se apresentar o tema: “A Grandiosidade para os Seguidores de Cristo é Servir”.
Enredo
O enredo mostra o desenvolvimento da história e é na tensão que se deve ter especial atenção, pois a partir dela o leitor terá sua expectativa despertada em relação aos fatos. A idéia sobre o reino é primordial neste desenvolvimento. Para os judeus que viviam na época de Jesus, o reino seria político com o devido restabelecimento da glória dos tempos de Davi exercendo poder e total vitória sobre os inimigos. Fica ainda mais fácil entender tal sentimento ao notar-se que Israel já amargara a angústia de ser submetido ao domínio de quatro impérios seguidos: o Babilônico, o Persa, o Grego e, agora, o Romano. Ladd descreve este pensamento judaico sobre o “reino” da seguinte maneira:
A oferta que nosso Senhor fez do reino de Deus não é o oferecimento de um reino político, nem compreendia bênçãos nacionais nem materiais. Os judeus desejavam um rei político para vencer seus inimigos.
[...] Temos descoberto que a esperança popular da vinda do reino de Deus significava o final do século e a manifestação do governo de Deus em poder e em glória, quando todo mal seria exterminado da terra [...].
[...] Este mesmo problema estava implicado na relação do messianismo do Nosso Senhor. Os judeus, inclusive os discípulos de Jesus, esperavam que o Messias fosse um rei “davídico” conquistador, diante do qual os inimigos de Deus e o povo de Deus não poderiam resistir; ou seria um ente sobrenatural que viria à terra com poder e grande glória para destruir aos maus e trazer o reino de Deus com poder (Daniel 7). Em qualquer destes casos, a vinda do Messias significaria o fim deste século e a aparição do reino de Deus em poder.
[...] O fato está em que os judeus da época de Nosso Senhor não entendiam o capítulo cinquenta e três de Isaías. Não sabiam que se referia ao Messias. Esperavam somente um rei conquistador, um poderoso Filho do Homem celestial em vez de um servo sofredor. Conseqüentemente, lhe deram as costas, recusaram segui-lo. Assim como rechaçaram Sua oferta do reino porque não era o que estavam buscando; rechaçaram Seu caráter messiânico porque não era um chefe conquistador, o tipo de monarca que eles desejavam (1988: 145-148, tradução nossa).
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Registrado este aspecto histórico, pode-se sugerir uma estrutura para o presente texto que conta com as seguintes partes: (1) exposição inicial - que apresenta as circunstâncias da ação; (2) tensão ou nó – o elemento que introduz a tensão narrativa; (3) resolução ou desenlace – aplicação da transformação sobre o sujeito; e (4) desfecho ou situação final – exposição do novo estado após a eliminação da tensão ou dificuldade.
Exposição – v. 20-21
Apresenta os protagonistas (os filhos da mulher de Zebedeu e Jesus), a mulher de Zebedeu e o pedido para que os seus filhos tenham posição de proeminência no reino de Messiânico.
Tensão 1 – v. 22
A primeira tensão é marcada pelo questionamento de Jesus em relação ao pedido feito pela mãe em nome de seus filhos. Ele deixa claro que o pedido está sendo feito por falta de conhecimento em relação a tudo o que ele ensinou até ali e em relação às consequências dele ser realmente atendido, pois o resultado seria acompanhá-lo em seus sofrimentos identificados aqui com a expressão “beber o cálice” que está prestes a acontecer, e que pode ser melhor compreendida a partir da explicação de Hendriksen:
No modo de expressão do Antigo Testamento e dos que estão familiarizados com sua literatura, “beber o cálice”, quer dizer, beber seu conteúdo, significa passar de forma completa por esta ou aquela experiência, seja favorável (Sal. 16:5; 23:5; 116:13; Jer. 16:7) ou desfavorável (Sal. 11:6; 75:8; Is. 51:17, 22; Jer. 25:15; Lm. 4:21; Ez. 23:32; Hab. 2:16). Jesus também falou do cálice de seu amargo sofrimento (Mt. 26:39, 42; Mr. 14:36; Lc. 22:42). E no Novo Testamento veja-se também Ap. 14:10; 16:19; 17:4; 18:6. Então, estão estes discípulos dispostos a serem participantes de seus sofrimentos, quer dizer, dos sofrimentos por seu nome e por sua causa (10:16, 17, 38; 16:24; 2 Co. 1:5; 4:10; Gl. 6:17; Fil. 3:10; Col. 1:24; 1 Pe 4:13; Ap. 12:4, 13, 17). (2003: 555, tradução nossa).
O pedido é respondido com outra pergunta à qual se espera uma reação. Os dois irmãos respondem afirmativamente, persistindo assim em sua falta de conhecimento do que os esperava.
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Resolução 1 – v. 23
A primeira tensão é solucionada parcialmente: se mesmo sem entender os dois irmãos queriam “beber do cálice”, então isto é o que iria acontecer. Mas o pedido continuaria em aberto. Há um conflito entre ideias e tempo: os dois discípulos pensam no reino terreno e no tempo mortal, enquanto Jesus trata do reino de Deus e do tempo monumental. Para fazer parte deste reino que tem perspectiva futura é necessário passar pelo mesmo caminho do Filho do Homem, que é o da humilhação para depois, sim, alcançar a devida exaltação. Até aqui eles desconheciam esse fato.
Tensão 2 – v. 24
Uma nova tensão é apresentada a partir do momento em que os dez discípulos restantes ficam indignados contra o pedido e contra os autores do pedido de glória. Mas o que teria trazido esta indignação e como ela teria ficado evidente? Como já mencionado no item sobre o narrador, este deixa a cena em aberto para que o leitor a imagine e olhe com mais atenção para a reação do protagonista, Jesus, do que para os demais personagens. Todavia, o fato de terem se indignado com os dois irmãos demonstra ciúmes, inveja e o desejo de terem o mesmo lugar solicitado pelos dois.
Resolução 2 – v. 25-27
A resolução para a segunda tensão vem do próprio Jesus de maneira extremamente didática: ele ensina e prova a possibilidade de obediência deste ensino pelo seu próprio exemplo. O modelo de seu reino é o serviço, tarefa que ele, o Filho do Homem, veio fazer para, então, passar a ser modelo para os súditos. Um pequeno gráfico comparativo pode deixar isso claro:
Reino de Cristo
o primeiro... será vosso servo
grande... será o que vos sirva
Reino dos Povos
governadores dominam
maiorais exercem autoridade
Tabela 2 – Reino de Cristo x Reino dos Homens
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A resolução passa, obviamente, por uma mudança nas mentes de seus seguidores: o modelo não pode ser mais o que eles conhecem e pelo qual eles tanto almejavam. O modelo agora é a própria liderança e governo de Jesus.
Desfecho – v. 28
Jesus é o próprio exemplo de grandiosidade, pois sua missão é servir. Seu reino não é o que pensam os dois irmãos, a mãe e os dez discípulos. É o reino onde a humildade é a principal virtude dos que dele participam. Não é um reino onde alguns poucos exercem autoridade sobre muitos, mas onde o seu rei ensina o princípio de liderança serva onde muitos servirão uns aos outros, pois “o Filho do homem [...][veio] dar a sua vida em resgate de muitos” (20.28).
Vale à pena apresentar a estrutura quiástica presente no enredo que pode ser vista a seguir:
A – Pedido para sentar à direita e à esquerda (v. 21).
B – Questionamento sobre beber o cálice (v. 22).
B’ – Afirmação sobre beber o cálice (v. 23).
A’ – Resposta sobre sentar a direita e a esquerda (v. 23).
Conclusão
A análise narrativa de Mateus 20.20-28 ajuda os leitores a entenderem a tensão do ser humano diante da possibilidade de experimentar poder e glória. As características de cada personagem, a tensão trazida ao meio por um pedido que gera ciúmes e revela o caráter humano que deve ser transformado pelo ensino de Jesus, são elementos narrativos constitutivos da riqueza textual desta passagem bíblica. A pouca presença do narrador e a falta de detalhes convidam o leitor a penetrar na cena e imaginar a situação ali vivida. A relevância do texto e o ensino presente atingem o comportamento e a vida do homem atual que luta por glória e domínio a qualquer custo. O reino de Cristo é diferente: é formado pelos mansos, humildes, servos, pelos que consideram a si mesmos os menores de todos a
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fim de serem considerados pelo Grande Rei como os maiores. Enfim, como Hendriksen expressa muito bem:
Jesus esteve enfatizando que em seu reino o maior é medido pela fita métrica da humildade (18.1-4); que a salvação pertence aos pequeninos e aos que se tornam semelhantes a eles (19.14); que confiar plenamente no Senhor, negar-se a si mesmo e dar, em vez de receber, é a marca registrada de seus verdadeiros seguidores (19.21) (2001: 341).
Referências bibliográficas
BÍBLIA de estudo de Genebra. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Cultura Cristã; Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.
HAGNER, Donald A. Matthew 1-14. Dallas: Word Books, 1995 (Word Biblical Commentary, v. 33b).
HENDRIKSEN, William. Mateus. v. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2001.
______. Exposicion del Evangelio Según San Mateo. Grand Rapids: Libros Desafio, 2003 (Comentario al Nuevo Testamento).
FERREIRA, João Cesário Leonel; AMARO, Diego Werner Cattermol; PROFETA, Helder Graciano. A relevância da teoria literária para a exegese bíblica: Um exercício em 1 Samuel 1.1-28. Revista Teológica, Seminário Presbiteriano do Sul, Campinas, v. 68, n. 65/66, p. 51-69, 2008.
KECK, Leander et al. Matthew. v. 3. Nashville: Abingdon Press, 1995 (The New Interpreter’s Bible).
LADD, George Eldon. El Evangelio del Reino. Miami: Editorial Vida, 1985.
MARGUERAT, Daniel e BOURQUIN, Yvan. Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.

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